quarta-feira, 23 de março de 2011

Biblioteca: Juliana Borges

Menina de Fases
Juliana Borges

Ela se chamava assim: “menina de fases”. Desde muito nova, quando começou a sentir que tinha alguma coisa de diferente dentro da sua cabeça, mudou o nome que a mãe lhe dera pra esse, assim ninguém iria saber quem ela era de verdade. O nome ela escolhera por causa da sua história, do seu segredo, do que a fez entrar e viver no quarto olhando pro céu.

Achava que tudo na sua infância era sem sentido, as amigas aprendendo e ela não sabendo nada, não escrevendo nada, não pensando em nada, até que um dia cismou com algo que viu nascer no céu e aí passou a imaginar o tempo todo como aquela bola enorme que mudava de forma tinha ido parar ali, naquele alto de escuridão sem fim.

Depois disso não quis mais sair de casa. Ficava horas na janela do quarto esperando a bola aparecer e quando a mãe dizia que ela tinha que comer, que dormir, que tomar banho, que falar, que sentir, que viver, olhava pra mãe e perguntava, com aquilo que parecia ser sua voz: “mãe, cadê a bola que hoje não aparece?”

No início a mãe tinha a maior paciência. Sentava-se ao seu lado, explicava que aquilo que ela via não era bem uma bola, ensinou que o nome era lua e, quando ela ficou maior, a mãe contou também das fases... Mas depois, quando a mãe viu que ela não saía mais de lá, que perguntava sempre as mesmas coisas, que só pensava na bola que era lua, a mãe começou a mostrar medo. Depois começou a trazer umas pessoas estranhas pra falar com ela, como se ela fosse doente. Isso ela entendeu logo... Era um tal de “olha, doutor, só fica aí olhando pro céu e não quer fazer outra coisa...”, ou “desde sempre, nem me lembro dela em outro lugar”, “pra comer, só se eu levar uma foto da lua junto com o prato, senão ela não desvia o olho do céu...”

Mas ninguém dava resposta alguma pro medo da mãe... Até o pai, um dia, resolveu ir embora... E ela ouviu bem quando ele falou: “fica aí, então, só pensando na sua filha maluca, que eu cansei dessa bobagem de ter que entender essa menina ao invés de deixar ela lá, morando no hospital, que nem o doutor falou”

Nesse dia teve pena da mãe. Ouviu a porta de casa bater, depois a mãe soluçar bem alto o tal do choro, pensou em ir ter com ela e passar a mão no seu cabelo, mas logo desistiu... E se ela saísse e a lua aparecesse pra buscá-la? Não podia se arriscar. Depois que se convenceu de que a bola era lua, teve que entender porque ela mudava de forma, tinha jeitos diferentes e época que ia sumindo até ficar dias sem surgir no céu... Aí percebeu que a lua queria falar com ela... E depois disso, ouviu ela lhe dizer que um dia iria descer lá do céu pra buscá-la. Mas ela ia ter que fazer tudo muito direito. E o direito era ficar ali, espreitando suas fases, esperando uma noite após a outra, e se saísse dali perderia a chance de encontrá-la. Era esse, então, o seu segredo. E não adiantava mãe nem doutor perguntar. Ela não dizia mesmo. E não queria nem saber de desistir do que passou a ser seus dias e suas noites ao redor daquela janela.

Aí a janela se transformou em espelho. Ela demorou um pouco a perceber a mudança, mas começou a notar que quando olhava pra janela, via a lua com seu rosto. No início foi tudo muito estranho mesmo. Ela, que nunca sentiu nada acontecer de muito diferente, começou a sentir vontade de fugir. Porque seu rosto começou a mudar, acompanhando as fases da lua. Afinava, crescia, arredondava e quando sumia, ela perdia a voz e parecia desaparecer no quarto. A mãe chamava e ela não conseguia nem dar sinal de vida. Não conseguia nem se mexer, quanto mais abrir o olho... E alguém sem rosto tem como ter olho? A mãe que tivesse lá o bom senso de entender isso...

Ficou assim por um tempo que ela nem sabe quanto. Só acreditava que fase e face era uma coisa só, mas depois perdeu o medo e achou que isso era um bom sinal, era o jeito da lua mostrar que o dia de vir lhe buscar estava cada vez mais próximo de acontecer.

Mas fora do quarto o barulho foi ficando maior depois dos dias de quietude, sem as brigas do pai com a mãe por sua causa... Parecia que entrava e saía gente toda hora, umas vozes falando pra mãe que aquilo era doença, que estava ficando cada dia pior, o que vai ser dessa menina, uns querendo entrar no quarto e a mãe, confusa, abrindo e fechando a porta sem parar, “não tenho coragem de deixar levarem a menina”, e ela sabia que a mãe era a única que aceitava ela ali, do jeito dela, da lua dela, das fases dela.

Hoje ela acordou achando que é esse o dia... Um brilho entrando pelo quarto como nunca aconteceu nesses dezoito anos dela de olhar pro céu procurando a lua. O rosto, no espelho da janela, mais lindo que nunca. Foi até capaz de sorrir. Sabe que a noite de hoje vai ser muito diferente. A casa está num silêncio só, nem a voz da mãe ela consegue ouvir direito. Enquanto espera, entra um moço que ela nunca viu no quarto. Não vai falar com ele nada, assim ele desiste e vai embora. Mas ele começa a falar umas palavras que ela não consegue escutar, tudo embolado... Mas esse moço é diferente dos outros. Não tem cara de doutor que quer que ela vá pro hospital. Ele senta-se perto dela e olha pra janela. Parece ver o mesmo que ela... “é aqui o espelho que você disse pra sua mãe?” Depois de um tempo de silêncio ela balança a cabeça, certa de que ele também não vai acreditar. Ele olha pra janela, olha pro céu, olha pra lua, fala como se estivesse pensando alto: “se eu visse sempre essa lua linda ia também querer parecer com ela, até ir embora com ela daqui”... Ela leva um susto enorme, “como esse moço sabe do meu segredo? Será que a lua é que mandou ele aqui pra me buscar?” Seu olhar passa da janela pro rosto do moço. Sem saber se deixa ele perceber que ela escuta o que diz, fica a observá-lo disfarçadamente, enquanto ele continua a dizer palavras de convencimento... “então você é mesmo a menina de fases que vive aqui, nesse quarto iluminado?” Ela balança a cabeça, mas sem deixá-lo, ainda, conhecer sua voz. Ele começa a lhe contar uma história comprida, de como tem vida lá fora do quarto, das ruas, da cidade, das pessoas, quer levá-la pra passear antes de irem ter com a lua, que ele já sabe que ela pensa que é hoje o dia de ir viver no alto do céu. Passam horas assim, ele falando devagar, com a voz baixa, ela escutando e pensando se deve ou não sair com ele dali, de onde vive escondida há mais de anos sem ver ninguém do lado de lá, a não ser a mãe, o pai, quando ainda vivia com elas, e os médicos que a mãe chama pra tirá-la dali. Pergunta-se se ele não seria mais um deles, mas nenhum falou com ela assim, sabendo do seu segredo, acreditando na mistura dela com a lua, conseguindo ver seu rosto no espelho no qual a janela tinha se transformado. Ele parece saber tanto de tudo o que ela sempre escondeu que ela começa a pensar em ir com ele logo, assim encontra a lua mais depressa. Fica, então, animada. Ainda calada, consente, com um gesto, em sair dali. E quando ele diz pra ela recolher seus pertences, ela responde, finalmente, que não é preciso ter qualquer objeto, só precisa de seu rosto, e que este, sim, é a única coisa que ela tem que interessa à lua, pois é dele que ela se apropria pra refletir as fases que surgem no céu.

E foi assim que o moço, segurando-lhe as mãos, abriu a porta do quarto pra menina de fases. E o caminho que tomaram, se o do céu ou se o do hospital, ninguém conseguiu, até hoje, decifrar.

A querida Viscondessa e Escritora Juliana Borges cedeu mais uma vez seu brilhante talento com este belo texto. É muito bom tê-la por aqui. O Castelo terá sempre seus portões abertos para ela. Seu blog, muito bom, é o http://primaletra.blogspot.com.

João Lenjob
twitter: @lenjob
http://lenjob.blogspot.com

TEXTO CEDIDO E AUTORIZADO POR JULIANA BORGES

Um comentário:

  1. Juliana, que lindo! Gostei muito de conhecer este seu lado escritora!
    Abraços,
    Anna Barbara

    ResponderExcluir