Pequenos Contos III
O Banho de Yara
Rosângela Maluf
O Banho de Yara
Rosângela Maluf
Outono ou inverno, primavera ou verão, o sol da tarde inundava o box do banheiro enchendo-o de luz, transbordando de claridade.
Era essencial que o sol inundasse todo o box, todo o banheiro, mesmo o espacinho por detrás da porta, atrás do velho cesto de vime, sobre o qual os gatos jaziam preguiçosos, tomando banho de sol e de língua.
Era um ritual consagrado ao prazer, à dedicação a si própria, ao estar a sós consigo e, ainda melhor, usufruir plenamente de sua própria existência, mesmo que por breves minutos. Ali ela era só ela, apenasmente e somente, ela. As vezes levava junto o rádio mas na maior parte das vezes, o grande prazer era quedar-se assim, sozinha, silenciosa, observadora, sonhadora, adolescente , fantasiosa...
Em frente ao espelho do armário uma espiada, em seu rosto sem maquiagem, a testa lisa, de pessoa em paz consigo mesma; um sulco de indagação e curiosidade dividindo-lhe, ao meio, a testa alta e larga. As sobrancelhas torneadas emoldurando olhos cor de mel, amendoados, olhos vivos, rápidos, certeiros, quase mortais. Ao mesmo tempo olhos de choro, de compaixão, de bondade e generosidade.
Ali, naquele santuário todos sentimentos contraditórios podiam conviver em harmonia, todas as lágrimas podiam rolar sem empecilhos e todo sentimento brotava e se esparramava pelo rosto abaixo, como chuva!
Abrir a torneira e esperar que o chuveiro atingisse aquela temperatura, entre quente e muito quente, ouvir o barulho da água caindo, escorrendo pelo ralo, o reflexo colorido dos raios do sol nas gotas que caiam.
Lá fora ruídos da tarde, buzinas, vozes, latidos. O sabonete, ah , o sabonete: um tablete de sabão ao leite, l’occitane, cuja loja do shopping da barra lhe fazia delirar com tantas preciosidades olfativas. Era louca por cheiros, perfumes, perfumes, perfumes...
Já despida entrou vagarosamente sob a cascata fumegante.
Deliciava-se ao sentir o calor descendo do alto da cabeça, do seu chacra number one até os dedos dos pés. Cobrinhas transparentes, serpenteando pelo seu corpo em movimentos descendentes, até o chão...kundalini reversa, não sobe, mas desce; energia perversa ou benéfica? sabia não...
A sensação indescritível de tomar em suas mãos a massa escorregadia e perfumada que ao deslizar pelo seu corpo deixava um rastro de prazer e espuma. De olhos fechados ela se ensaboava, pensando em campos floridos de girassóis, em praias gregas, na celebração do sol no tahiti, um pôr de sol na ilha de capri, safári na áfrica, banho no ganges.
Tudo se passava como num filme, porém em câmera lenta, muito lenta...
Seus dedos caminhavam com lentidão por todos caminhos tantas vezes já percorridos. A maestria com que se tocava, descobrindo cada recôndito de si mesma, a ternura infinita com seu próprio corpo, uma rápida prece de agradecimento pelo corpo de mulher saudável, um organismo perfeito e controlado, como um reloginho de parede tic tac tic tac
Tudo bem que a lei da gravidade insistia em jogar pra baixo tudo o que até bem pouco tempo atrás estivera em cima. Mas isto não era o mais importante. A textura da pele importava mais, o toque de seda ou de veludo, as sessões intermináveis de pedra pomes e hidratantes.
Resistir, quem há de?
O ritual era sagrado. Exorcizava demônios, acalmava tempestades, silenciava trovões enviados por yansã, parava o tempo em qualquer campo de guerra, paralisava imagens de explosões atômicas, inundava todos os sentidos.. o olfato!
Ah, quantas viagens viajara só com os cheiros, os aromas, temperos, e especiarias, das fragrâncias, um sonho ! Uma violeta umedecida pelo orvalho da noite, uma pérola ainda incrustada na ostra rescendendo a maresia, uma estrela num céu claro de abril, um hálito de bebê...
Saiu calmamente enrolada em toalhas brancas, uma nos cabelos, outra nos quadris. Se secou, trocou as toalhas por um roupão de seda e respirou fundo. Deitou-se aproveitando o resto de sol que batia em sua cama e se deixou ficar!
Esse ritual das deusas, essa paz quase monástica, interrompida por um insuportável tocar de telefone.
Mais uma vez no Castelo a Condessa Rosângela Maluf, super escritora, prima, da Região Férrea mineira e além de talento, super carisma, atenção e companheirismo. Desta vez seu conto é O Banho de Yara e para quem não leu seus contos anteriores, seguem o primeiro Graciliana e o segundo Otávia. Provável que todas as quarta-feiras sejam suas aqui no Castelo. Estamos encerrando as negociações. Mais sobre ela no http://romaluf.blogspot.com.
João Lenjob
twitter: @lenjob
http://lenjob.blogspot.com
TEXTO ACIMA CEDIDO E AUTORIZADO POR ROSÂNGELA MALUF
Uauuuuuuuuuuu!
ResponderExcluirComo ela anda inspirada!!!!!
2011 replete de alegrias e inspirações!!!! Quer o vê-la num best seller...
Mil beijos,
Cidinha
Minha cara Rô,
ResponderExcluirParabéns e obrigada.
Tenho me deliciado com seus contos.
Beijos,
Santusa Utsch
Ei Rô,
ResponderExcluirParabéns! Você está brilhando e nos encantando.
Baccio,
Tarcisio Afonso
"O ritual era sagrado. Exorcizava demônios, acalmava tempestades, silenciava trovões enviados por yansã, parava o tempo em qualquer campo de guerra, paralisava imagens de explosões atômicas, inundava todos os sentidos.. o olfato!" E todo esse conto, e vc Rosângela, me manda uma dessa? Demais!!!
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